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CRÔNICA DA SEMANA

CONTRARREGRA

          Pratos, xícaras e copos vão ao chão.

        Tudo ouço, tudo vejo e nada digo. Não há o que dizer. Nem o que julgar. Qual pacífico não gostaria de arremeter a cristaleira em um dia escuro, mesmo que de céu azul?

        Há raiva, dor e desespero em cada louça quebrada. Espero passar. Espero o silêncio. Enquanto espero, olho os cacos na busca inútil por uma peça inteira. Pelo menos de longe, não há. E não chego perto com medo de lhe magoar, expondo o desatino. Amiga é contrarregra que não atrapalha a cena.

          Não há cortina nem público. Somos só nós dois e cabe a mim desempenhar bem o meu papel nesse monólogo que não me pertence. Não escrevi, não dirigi, nem ao menos comprei ingresso. Fui chamada às pressas e como uma boa contrarregra que sabe tudo do espetáculo, obedeci.

          O tempo passa. A respiração ofegante se cansa e volta comportada, mas ainda sentida, ao seu lugar. Eu me aproximo, mesmo que receosa. Sento perto e seguro sua mão. Ele me olha, triste e envergonhado. Eu lhe dou um meio sorriso pra lembrar que está tudo bem.

          Ficamos muito tempo assim, quietos. Quando sinto que o pior já passou, digo que vou fazer um chá. Chá para mim é remédio para qualquer dor. Cresci tomando chá de camomila para nervoso, erva-doce para dor de barriga, cidreira para dormir, hortelã para sinusite e qualquer um para quando estou triste. Chá com mel é minha receita de afeto.

            Ele diz que acha que não tem chá, mas eu saco uma caixinha mágica de dentro da bolsa. Contrarregra é assim. É contratada para resolver as faltas e as ausências porque o show não pode parar.

            A noite cai, o chá faz efeito, eu recolho os cacos do chão, acendo as luzes, varro tudo e deixo o cenário pronto para recomeçar. Talvez a próxima cena seja mais tranquila, mas, pelo sim pelo não, prevenida, coloco o vaso com flores em um canto bem longe.

          Aproveito a lua da bonança para me despedir. Sou uma contrarregra cara e, por isso mesmo, ele me paga com um abraço bem apertado. E penso que por nada nesse mundo, eu largo esse emprego.

SP 07/05/24

         

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