Miriam Bevilacqua

          Todo mundo conhece a história dos dois irmão Caim e Abel , e sabemos que Caim matou Abel. Essa história está na Bíblia e sempre intriga quem a lê porque se Adão e Eva só tiveram filhos homens, como foi que a humanidade prosperou? Além de serem dois homens, um ainda matou o outro. Não tem lógica.

       É preciso lembrar que os livros considerados sagrados, que norteiam as mais diversas religiões, foram escritos há séculos e há muitas histórias como essa de Caim e Abel sem muita lógica mesmo. Dá até para  imaginarmos que mesmo não sendo uma história real, a intenção tenha sido o simbolismo da mensagem, mas mesmo assim, vamos combinar, é estranho.

          Por isso que eu gosto tanto desse livro bem pequeno chamado Caim do premiado e excelente escritor português, José Saramago. Saramago, a partir da história famosa de Caim, resgata outras histórias ilógicas que existem na bíblia e nos faz refletir.

        Na bíblia, há o livro de Gênesis que fala da origem do mundo e dos seres. O livro de Gênesis nos conta que depois que Adão e Eva foram expulsos do paraíso, eles tiveram dois filhos: Caim e Abel. Muitos e muitos anos depois eles vão ter outro filho, também homem, chamado Set, mas Set não entra na história de Saramago.

          Ainda na bíblia é relatado que Caim quando jovem se tornou um lavrador e Abel, um pastor de ovelhas. Um dia, os dois rapazes vão fazer uma oferenda a Deus. Abel oferece a gordura e a carne de seu rebanho, enquanto Caim oferece os frutos da sua colheita. Por alguma razão, Deus recebe a oferenda de Abel, mas não a de Caim, o que deixa Caim possesso de ciúmes, e faz com que ele mate Abel. Deus então condena Caim a vagar pelo mundo por toda a eternidade e para garantir que ninguém matasse Caim e seu castigo fosse eterno, Ele ainda coloca uma marca na testa de Caim e amaldiçoa qualquer um que tente matá-lo.

          No livro de Saramago, esse começo é exatamente igual à história que está na bíblia, mas, depois de Caim matar Abel, Deus aparece e Caim se defende dizendo que se ele era mesmo Deus, que deveria ter recebido a sua oferenda e não devia ter permitido que ele praticasse o assassinato do irmão. Então, Deus percebe que tem sua parcela de culpa. O que é bastante interessante. E ainda no livro, Caim consegue se deslocar do presente para o passado ou futuro, mas sem que possa controlar nem o lugar e nem o tempo.

          O que Saramago imaginou é que Caim depois de ter sido amaldiçoado por Deus, ele vai passar pelas principais passagens do antigo testamento, que estão no livro Gênesis. São passagens conhecidas como a destruição de Sodoma e Gomorra, o sacrifício do filho de Abraão, a construção da torre de Babel, a arca de Noé e assim por diante. Entretanto, não é simplesmente revisitar essas histórias. Caim vai ter sempre um outro olhar e vai interferindo nesses fatos. Então, claro, é uma visão irônica e cheia de sutilezas do escritor português.

          Aqui no site há outra resenha de outro livro de Saramago que também aborda a religião que é o Evangelho Segundo Jesus Cristo, que eu recomento muito que você leia. Vamos lembrar que Saramago era português e teve enorme influência da religião católica, já que Portugal sempre foi um dos países mais católicos do mundo. O que o escritor faz é usar sua capacidade crítica e talento literário para abordar a religião por um outro olhar. Na época em que o Evangelho Segundo Jesus Cristo foi publicado, Saramago, ganhador do prêmio Nobel, recebeu muitas críticas da Igreja Católica. Caim, escrito mais de uma década depois, também não foi bem recebido pela Igreja.

         O que eu sempre reforço aqui, é que a literatura é livre e por mais que a religião seja sempre um assunto difícil de abordar porque cada um tem a sua, é uma obra de ficção. Então não se trata de desrespeito à qualquer religião. E também vamos lembrar que fé é uma coisa e religião é outra. As pessoas podem ter fé em uma divindade e não ter religião nenhuma. Aliás, a fé em divindades já estava presente no homem das cavernas, enquanto as mais diversas religiões só foram aparecer muitos e muitos anos depois. Por isso, uma coisa independe da outra.

        Caim é um livro curto, muito interessante, e que se você puder ler e depois ainda buscar no antigo testamento essas passagens ao que o livro se refere, vai ser melhor ainda. Você vai ter uma compreensão muito mais ampla dessa que é a história cultural da humanidade. Vale a pena a leitura.

         

Vídeo-resenha: https://www.youtube.com/watch?v=3d-svYSibTU

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FICHA TÉCNICA

Título Original – Caim

Edição Original – 2009

Edição utilizada nessa resenha: 2017

Editora - Companhia das Letras

Páginas: 172